"Os portugueses são gente triste"
Entrevista com António Borges Coelho, historiador
Fernão Lopes (FL) é, a seu ver, o fundador da prosa portuguesa. Escreveu-o na introdução da antologia das crónicas que acaba de organizar. Vê-se de que modo a si próprio: como um historiador-escritor, cultor da beleza da forma?
Julgo que sim. A forma é essencial para vazar o nosso pensamento, quer se ligue ao quotidiano, à teoria sobre o mundo ou às coisas. Desde criança, sou um apaixonado pelas palavras. Em Fernão Lopes, o estilo é inconfundível. A prosa histórica pode ser tabeliónica, e ele foi tabelião, mas conseguiu ir muito mais longe. Usando uma linguagem literária, não ajeitou facetas, sabendo que não há palavras unívocas, tendo a consciência do seu sentido contraditório. Também as palavras têm história. Do ponto de vista da escrita, Fernão Lopes e Oliveira Martins são os meus modelos.
Um mais rigoroso que outro...
Oliveira Martins menos rigoroso, mas espectacular na forma. Um grande cultor da prosa portuguesa. A escrita rica e dúctil não é inimiga da tarefa do historiador.
Que é, afinal, um historiador?
Um manipulador do tempo. O que vem às suas mãos são os factos históricos com os quais tem de construir um tecido obedecendo às informações, escritas ou não. Tem de as organizar, de as concatenar, criando uma estrutura teórica e de prosa que dê autenticidade ao presente e ao passado. Deve ser atento, observador, um homem da imaginação, mas não pode inventar factos como o romancista, nem usá-los a seu bel-prazer.
É um viajante do tempo, o historiador?
Sempre. A paisagem que vê é, muitas vezes, apaixonada ou sombria.
Aí entra o poeta (e ficcionista), que Borges Coelho também é?
Esse não adormece nunca, vai aparecendo em sonhos.
Segundo Fernão Lopes, a história fala-nos dos de cima. Na sua opinião, o cronista abriu janelas para os de baixo, concepção que tem sido derrotada e reconquistada ao longo dos tempos. Como a vê à luz dos nossos dias?
Os de baixo ocupam hoje o seu papel na história, mas o olhar principal está voltado para os de cima porque têm as alavancas do poder, a possibilidade de conduzir o dia-a-dia. A capacidade de transformar a realidade provém, todavia, das labaredas, das convulsões que vêm de baixo.
E no tempo de Fernão Lopes?
FL tornou Lisboa na sua personagem quando reis e senhores eram os actores principais. Esse turbilhão de gente - a arraia-miúda, os fidalgos, os honrados - surge na sua narrativa.
João de Barros fala da crueza do retrato que Fernão Lopes faz dos reis, visão contrastante com a de Herculano, que distinguia menos bem a parte política da social...
João de Barros - que viveu num tempo em que a coroa tinha um papel fundamental na condução dos acontecimentos - gostava mais de Zurara. Quanto a Herculano, era excepcional, apesar das tiradas moralistas. Diz, por exemplo, que aconteceu mal a um rei para castigo dos seus pecados. Rasgou, no entanto, caminhos para a história social. Os últimos volumes da História de Portugal continuam a ser peças fundamentais para o estudo da Idade Média.
Um retratista, Fernão Lopes?
Sim, nos antípodas de qualquer cronista até ao século XIX. Lembre-se a descrição que faz da gaguez de D. Pedro ou o episódio de D. João I, que, para exemplo de um amigo a morrer com uma seta envenenada, bebe uma tigela de urina que, segundo lhe tinham dito, anularia o efeito do mal. Pergunto: a figura fica diminuída? Não, para mim, mais humana. Por outro lado, os de cima gastam fortunas com a propaganda pessoal, com o protocolo. Fernão Lopes não os destrói, mas brinca com eles.
Borges Coelho também é irónico...
O passado tem valores que, muitas vezes, não são coincidentes com os de hoje. Ao reproduzi-los, sem o riso irónico, está a fazer-se propaganda. Uns são válidos, outros caducos. O historiador tem de ter consciência disso e transmitir esse estremecimento ao leitor, dando-lhe a conhecer que houve evolução - para a frente ou para trás - ou estagnação. Passei boa parte da minha vida na Idade Média, nos séculos XV, XVI e XVII. E já cheguei ao século XXI. Milhares de páginas, de notas, de apontamentos.
Acha que o cronista trouxe consigo uma nova arte de historiar?
O prólogo da Crónica d'El Rei Dom João I de Boa Memória aborda a forma de fazer história. Aí se fala de uma maneira moderna de historiar, baseada no uso dos documentos, por vezes na íntegra, na confrontação das fontes. A primeira parte desse texto incomoda, ainda hoje, os estômagos mais sensíveis porque trata de uma revolução com a agravante de que FL não usa imprecações contra os homens que se manifestavam na rua e tomaram o poder. Esse é um problema-chave para certos autores que consideram mais relevante a Crónica de Dom Fernando que, de uma forma esplendorosa, conta como o Infante Dom João se casou secretamente e possuiu a irmã de Leonor de Teles, matando-a depois.
Como vê a Crónica de Dom João?
É a história de um movimento de massas. Fernão Lopes podia dizer que Lisboa estava angustiada com Aljubarrota em marcha, mas não, conta uma narrativa que sente de perto a gente de onde viemos. Há gente de cima magnificente e gente de baixo deplorável e vice-versa.
Há quem "relativize a verdade" de Fernão Lopes, questão que o historiador António José Saraiva aborda, argumentando com o seu comprometimento com a Casa de Avis.
É evidente que ele toma partido. Não há história neutra, nem jornalismo neutro. O historiador não inventa factos, porém. Duvido dos que não tomam, nem intimamente, posição. Fernão Lopes é um servidor da Casa de Avis, mas ama Lisboa, considera-a a mãe que alterou o rumo da história: na altura, era a união de Portugal com Castela.
FL era a favor de Portugal...
E eu não o critico por isso. Muitos argumentam pondo em xeque a "verdade" de FL, mas não o conseguem: ele baseia-se em testemunhos e documentos da época e não hesita em contar histórias não favoráveis à sua causa. No tempo em que o cronista escreve, estão no poder os filhos de alguns dos principais nobres, que combateram por Castela. FL não deixa de referir os nomes dos pais que estiveram do outro lado. Não estou a dizer que era imortal, cometeu erros, mas ultrapassou a frieza dos acontecimentos, sabendo que eles são quentes, por vezes escaldam.
Todo o historiador é um ensaísta?
Mal do historiador que não pensa a história, que não a interpela, que não a questiona. Os factos requerem sempre uma interpretação.
FL era um retratista?
O retrato de Leonor Teles é extraordinário. FL diz que foi ela quem ensinou as mulheres a tratarem com os seus maridos. Muitas vezes utiliza o lugar da arraia-miúda para apontar o dedo à rainha, não deixando de realçar a sua beleza e coragem. Quando D. João lhe pede perdão por ter matado o Andeiro, ela pergunta-lhe por que razão está ele a pedir-lhe uma coisa que ele tem, assumindo, ironicamente, que não tem força para o castigar. Ele tinha o poder, ela jamais poderia perdoá-lo. É difícil encontrar mulher mais forte na história portuguesa do que Leonor Teles.
Prefere deixar a sua impressão digital na sua obra histórica, mesmo correndo o risco de se contradizer, a seguir um caminho de síntese?
Embora prossiga com o máximo rigor, erro mesmo assim. O que me entusiasma é questionar, discutir ideias. Alguns dos textos de que mais gosto foram dedicados a escritores: Fernão Mendes Pinto, Padre António Vieira, Manuel Fernando Vila Real, Herculano. Fizeram-me entrar no campo da teoria da história mais a fundo.
Considera-se cidadão do mundo?
Não me sinto um cidadão ocidental, mas, brincando, um pouco, como a Igreja nos seus tempos ecuménicos, sinto-me um homem do planeta, atento às questões que envolvem os humanos: a desigualdade continental, a pilhagem das matérias-primas pelos países mais desenvolvidos mascaradas por batalhas pela democracia e os direitos humanos.
Acusam-no de nacionalista...
Se sentir na minha pele as fragas de Trás-os-Montes e a luz de Lisboa, é ser nacionalista, não repudio essa identificação.
Vê como o Portugal de hoje?
Demasiado amarrado aos compromissos europeus. Preocupa-me a perda acentuada daquilo que se conquistou na Europa ao longo de quase dois séculos. É preciso dar a volta.
E o cidadão português comum?
Quando existia o MFA, reivindicava, agora mete-se em casa, vê televisão. Esta é a imagem de um povo acomodado, demasiado acomodado. Os franceses descreviam-nos alegres. Hoje somos gente triste.
Trinta empregos, professor particular sem o aval da PIDE, desemprego. Seis anos e meio preso: Peniche, Aljube, Caxias, Porto. Meio ano nos curros. Dava umas Memórias do Cárcere...
Não me quero lembrar. E ainda cinco anos de colégio interno. Gostaria que o projecto do Museu da Resistência, no Aljube, avançasse e conservasse a memória de todos aqueles que lá sofreram e penaram. Aflorei esse tempo, ao de leve, numa novela. Como professor universitário, sou filho da revolução, integrado em 1974. Antes, apesar da ditadura, respirava-se um ar de confiança e esperança no futuro, hoje sinto-lhe a falta. Não acho que seja uma questão de geração.